O DOUTORADO #1 — Perdi 33 foguinhos no TikTok. Devo acabar com tudo?
Aconteceu. Apesar de todos os meus esforços, da estima em que carrego meus amigos e de toda a confiança que em mim foi depositada, eu cometi esse crime. Crime que, se fosse cometido contra mim, eu julgaria absolutamente imperdoável.
É possível que você, leitore, tenha escapado das garras do TikTok, seja por nunca ter dele participado, ou por ter dele escapado em definitivo. Nesse caso, provavelmente não seja de seu conhecimento que há alguns meses o aplicativo implementou um sistema no qual dias consecutivos em que usuários trocam mensagens (que geralmente contêm conteúdo lobotomótico) são comemorados e sinalizados pelo app através de pequenos ícones de “foguinhos”. Isso é uma clara referência (“referência” aqui tem o significado contemporâneo de plágio não punível por lei) a um sistema similar implementado pelo falecido Snapchat (“falecido” aqui tem o significado contemporâneo de a essa altura apenas utilizado por estadunidenses).
Ao longo das últimas semanas eu vinha cultivando, sem dor nem culpa e aos plenos 23 anos, uma sequência relativamente longa de foguinhos com um amigo. Sem falta, geralmente à meia-noite, eu fazia questão de abrir o demoníaco executável tricolor para encontrar a primeira, a segunda, a terceira (…) besteira que eu saberia causar nesse meu amigo a nova emoção fundamental do séc. XXI (denominada Literalmente Eu). Sentia-me de volta em 2016. Mas não daquele corriqueiro jeito que nos encontra nos pesadelos, em que nos vemos de volta ao Ensino Médio devido a uma nova canetada do governo. E sim de um jeito revigorante, como se eu fosse capaz de retornar àquele momento carregando toda a sabedoria dos últimos 8 anos. Estando lá completo. Não terminado, mas desenvolvido. Confiante e cognoscente. Não mais tirando foto do quarto escuro apenas com um emoji para manter o fogo da “amizade”, mas encontrando experiências comuns que fortalecem os meus laços. Não mais me podando, como um frágil bonsai, para caber nos limites de uma cidade que não me cabia e que fazia pouco para caber em mim. Não mais performando a tépida e jamais crível sombra de heteronormatividade e conformidade*, imposta a todos os nascidos em cidades de região metropolitana com menos de 500 mil habitantes mas com muito mais que 100 mil — e pela maioria desses aceita sem conflitos.
A primeira das muitas sabedorias que pretendo compartilhar com meus pupilos nesta publicação segue nesse parágrafo. Sempre que nasce um habitante da região metropolitana, as fadas reúnem-se e deliberam. Uma vez em cinquenta, elas decidem salpicar sobre o infante uma dádiva/maldição que eu chamo de pozinho de POA (preciso trabalhar mais nesse nome). A partir desse momento, de forma determinística, a vida da pessoa selecionada estará para sempre vinculada à Cidade Afundante da margem leste do Guaíba. Esse vínculo é mais forte e inquebrável que o vínculo dos nela nascidos, diga-se de passagem. E a partir de uma certa idade, os sintomas começam a aparecer. Sinto na pele, desde a metade final dos anos 2010, esta chaga feérica.
O foguinho do TikTok, em sua farsesca imitação do Snapchat, me veio no fim da faculdade ao invés do Ensino Médio. E encontrou um ser mais disposto e mais dedicado a seus pares. Mesmo assim, encontrou um ser falho, como deveria encontrar. No dia dos pais, pro bem e pro mal, a necessidade de venerar o deus pagão do #Conteúdo me escapou. O perdão veio desse meu amigo com a mesma facilidade que veio sua amizade, e eu não poderia ser mais grato. Seguiremos juntos em direção ao próximo foguinho e à próxima falha. Rogo apenas que dessa vez ela não seja minha.
A questão que fica é: será para sempre assim? Seria a vida um grande ensaio, repetido inúmeras vezes ao longo das décadas, em que cada nova repetição das falas do roteiro nos encontra mais humildes, mais sábios e mais passíveis de perdão — mesmo se não mais inclinados a distribuí-lo?
Isso me leva ao grande elefante branco na sala. Afinal, nada tem mais cheiro, gosto e sensação de uma nova dança sobre os mesmos compassos que O DOUTORADO. Criei meu primeiro Blogspot antes de ter dois dígitos de idade, e ao longo da próxima década tentei por diversas vezes procurar um canal de comunicação via texto/áudio médio-longo com o mundo e seus habitantes. Um dos meus privilégios me parece, a essa altura de minha vida, residir justamente no fato de que cada uma dessas tentativas deu completamente errado até agora. Que bom! Só agora sinto-me, finalmente, capaz de realizar essa comunicação de forma plena. Tenho agora vários algos a dizer e sabedorias a compartilhar. Além, é claro, de uma necessidade hoje não apenas existencial como profissional e acadêmica de exercitar os músculos prosadores. Por isso convido todes a compartilharem comigo esta jornada.
Como uma Carrie Bradshaw homem*, 13 cm mais alta, terceiro-mundista, pobre, que faz menos sexo e se veste de forma menos risível, pretendo a partir de hoje regularmente comentar sobre a experiência da minha pluralmente perdida Geração ao mesmo tempo em que tento ao máximo vos divertir e trazer um momento leve a vossos dias e noites. Para não perder as próximas edições dessa volátil coluna, coloque seu e-mail nos espaços disponíveis no meu perfil e compartilhe com seus amigos!
Hoje é dia 12 de agosto de 2024. Comemoro a morte de um ministro da ditadura civil-militar brasileira, retorno à casa de minha mãe depois de duas semanas fora, e escrevo esta coluna. Nos veremos na próxima.
(*) Me identifico como um homem bissexual há 7 anos. Provavelmente, porém, me encontro em algum espectro de não-binariedade, ainda que nesse presente momento a procura por emprego e estabilidade de vida atrase algumas descobertas. Tenho experimentado de forma casual a ageneridade. Me apresento de forma masculina, em iguais partes por que não me incomodo e por que é mais barato e fácil. Nada é constante. A vida é um grande metabolismo microscópico, macroscópico, histórico e geológico. Caso algo mude nesse quadro, convido-vos a acompanhar essas mudanças por aqui!
O DOUTORADO por Dr. Memes é uma publicação (que devia ser semanal mas provavelmente vai ser quinzenal) feita no Medium. Recuse imitações! E acompanhe as próximas edições através do e-mail ou do Twitter @doutormemes. Dr. Memes (ou Noam Mendes) é um jovem historiador, professor e artista da Grande Porto Alegre.