O DOUTORADO #2 — O Evangelho do Novo Apocalipse, segundo (Farmácias) São João

Escutai. As árvores ao redor farfalham em novos idiomas. Em todos e em cada um dos alfabetos, silabários, abjads, abugidas e logogramas, repete-se a frase: o fim está próximo. O dia do Ragnarok em breve estará sobre nós.
No tempo interminável entre minha primeira coluna e esta segunda, muito transcorreu. Mas as verdades seguem imutáveis, exceto quando cada uma delas decide partir do mundo do desconhecido para prostrar-se, plenamente, frente aos entes sencientes destemidos o suficiente para percebê-las.
Encontrava-me em um ônibus, um ônibus demorado e empoeirado, que me levava do Campus do Vale da UFRGS até os arredores de minha residência em Gravataí. Através de 4 municípios, o decrépito receptáculo azul de propriedade da empresa Viamão movia-se rapidamente, à revelia da forma decadente de seu chassi e do raivoso solo que atacava sua suspensão. Entra um passageiro. Um homem. Um Homem. Moletom, calça de abrigo, boné, as cores dos seus trajes tingidas por solo e cal. Cara fechada, barba por fazer, feições erodidas pela vida e a compleição atlética de um louvável trabalhador da construção civil. O pedreiro, que passava a catraca para seguir a turbulenta viagem em pé, não exalava sua virilidade. Pois exalar é um verbo lúdico, gracioso, líquido. Sua virilidade não brincava de se misturar ao ar. Apenas era. Estava ali, sólida, assentada como um bloco de cimento, desafiando o relativismo dessa era pós-estrutural com seus ares de eternidade e constância. Ele se ajeita para ficar em pé durante a viagem, tirando de seus ombros (monolitos à Marte) a mochila que carregava, e a colocando no chão. E a mochila? Como era a mochila?
Rosa. Completamente rosa. Enfezadamente rosa. Estampada com as proporções impossíveis e os delineados mágicos das integrantes da associação mágica conhecida como Clube das Winx. Não apenas remetente ao feminino, mas ao inocente feminino infantil. Naquele momento, o véu caiu. Eu me lembrei de todos os pedreiros de minha vida. Foram muitos. Meus pais viviam fazendo obra, se mudando. E uma parcela grande, uma maioria absoluta desses trabalhadores usava, também, mochilas rosas. Antes que eu pudesse pensar sobre uma teoria conspiratória que pudesse explicar aquela realização; antes que eu pudesse iterar em pensamento “literalmente eu” por encontrar naquele contraste algo com o que eu me identificava em termos de gênero; antes que eu pudesse repreender a mim mesmo por estar fazendo suposições idiotas sobre a vida de uma pessoa que eu não conheço e que estava apenas voltando para sua casa depois de um dia de trabalho mais duro do que eu jamais realizarei em toda minha vida (não apenas por privilégio, mas porque eu não teria forças físicas e de caráter para realizá-lo), a mochila falou comigo.
Ela me olhou, alças nos olhos, e sussurrou dentro da minha cabeça.
Na profundidade do mar da consciência, na tranquilidade do campo unificado que une as partículas fundamentais da criação às sinapses primevas dos entes cognitivos, encontrei mais uma verdade. Vi-a, desde então, pintada nos céus, cegos pela fumaça; nas gotas negras e ácidas de chuva; no acúmulo dessas gotas em nosso solo cada vez mais impermeável; e a vi em um vislumbre do futuro próximo, na parte de trás do caixa de um estabelecimento comercial. O fim se aproxima, enfim. Sempre soube que começaria por Porto Alegre e pela região metropolitana, mas não havia até então imaginado quem seria seu arauto. Pouco a pouco, ao longo da última década, o cancro das farmácias estabelece suas metástases ao longo de todo o perímetro urbano. Cada nova antiga residência trazida ao chão, cada nova esquina coberta por tapumes, em breve revelava-se uma farmácia. Quando primeiro percebi essa abundância de estabelecimentos, meu cérebro simbólico foi a uma simples explicação: nada mais natural, visto que o mundo parece estar cada vez mais doente. Mas esse modelo explicativo passou a não mais dar conta do que acontecia no interior dessas farmácias. Os remédios e demais drogas lícitas, os cosméticos e itens de higiene pessoal sempre estiveram disponíveis nas prateleiras. Mas, logo, estrangeiros passaram a se assentar nelas. Coloridos energéticos. Refrigerantes. Pastilhas sem nenhum princípio farmacêutico, doces. Até aí tudo bem.
Então vieram as fritadeiras elétricas.
As cadeiras de praia. As churrasqueiras portáteis. As canecas e copos Stanley. Jogos de panela e de talheres. Guarda-chuvas. Salgadinhos e bombonière. Em meu sonho, vi os próximos na fila de migração (ilegal, a meu ver) às farmácias:
Os cigarros e o álcool.
O fim está próximo. Mas isso é conhecimento geral. Compartilho com meus pupilos apenas uma ferramenta para reconhecê-lo: quando aparecer o primeiro maço de Kretek ou o primeiro latão de Amstel na Farmácia São João, vá para casa. Abrace seus familiares. Viva o amor e a felicidade que este mundo derradeiro ainda pode lhe proporcionar e se prepare.
Levar pra casa o Kretek e a Amstel pra facilitar o processo é facultativo, mas altamente recomendável.
Eu sei, eu sei, esse texto demorou pra sair. Como dito desde o começo, manter essa publicação seria para mim uma tarefa árdua. Esse exercício de escrita é também uma guerra contra a inércia (além da máfia chinesa e da empresa de ônibus SOGIL, mas isso não vem ao caso agora). Não pude vencer todas as batalhas. Mas nunca deixarei de lutar. Contudo, a fraqueza do Dr. deve servir a seus pupilos como um teste de paciência. Mas não imaginem que essa guerra foi figurada ou metafórica. Tive de fato que brigar de tapa e de soco com espíritos malignos para poder trazer essa coluna a vocês. Nesse tempo em que fiquei preso na Cabine Negra, lidando com clones do mal, árvores falantes e cafés sólidos, muito aconteceu. Pretendo abordar esses tópicos nas próximas colunas.

Hoje é dia 1º de outubro de 2024. Me sinto ansioso com a chuva, em mais um dia de leitura e estudo no sítio de papai. Nos veremos na próxima, ela virá.
O DOUTORADO por Dr. Memes é uma publicação (que devia ser semanal mas provavelmente vai ser anual) feita no Medium. Recuse imitações! E acompanhe as próximas edições através do e-mail ou do Bluesky @doutormemes.site. Dr. Memes (ou Noam Mendes) é um jovem historiador, professor e artista da Grande Porto Alegre.