Um desconforto. O ombro queima sob o travesseiro. Cada uma das dobras do lençol, que em breve se mostrarão inocentes, rosadas e fugazes no espelho, ardem como chicotes. Um lado. Outro lado. Um terceiro lado até então não descoberto pela anatomia. Um 360 para entrar na linha de tiro do ventilador. São quatro travesseiros: um suporta a cabeça (melhor do que eu mesmo consigo); um entre os joelhos; um recebe meu abraço; outro, nas minhas costas, finge me abraçar. E cada vez que viro — e viro muito — tenho que reorganizá-los. Horas desperto viram minutos. A boca queima, maltratada pelos vícios.
E então, eu durmo. Minutos dormindo viram horas. A boca ainda queima. Chispa. Os dentes dão cambalhotas. São cuspidos pra fora e voltam como se fossem ímãs. Nenhuma outra dor do corpo dá sinal, mas tampouco o conforto dos travesseiros. Lentamente, cada uma e todas das gôndolas que remavam entre os grumos da massa cinza viram de cabeça pra baixo. Mas não afundam. Infinitesimalmente, abaixo da superfície, há outra superfície. Os remos remam ao contrário. O vento chupa em vez de soprar.
Foram duas as vezes que chorei a morte de alguém que nem conhecia pessoalmente. A primeira, Santa Rita, me pegou no meio de uma faxina. Enquanto eu e o aspirador de pó descansávamos, puxei meu celular e fui ver se nada continuava acontecendo, como o nada se acostumou a acontecer. Ela morreu. Pensei: que triste. E a tristeza não veio. Já estava com fone no ouvido, então aproveitei pra lembrar um pouco da voz dela e dos acordes simples e certeiros daquelas músicas. Liguei o aspirador de novo e botei ela pra tocar. Antes da primeira música acabar eu tive que parar tudo, sentar no sofá e virar uma poça de lama. Sentir não é igual a saber, e eu soube antes de sentir. Chorei que nem um bezerro. Não conseguia parar e não conseguia explicar o porquê. Nem era tão fã assim, eu pensava. Mas não existe explicação racional pra esse tipo de coisa, não existe lógica ou powerscaling de tragédia. Às vezes as coisas te pegam. Resolvem dar uma dose de humildade pra esse “autoconhecimento” que tu acha que tem. “Não chorei assim nem quando meu vô morreu” — disse eu pra eu mesmo. E o eu mesmo não conseguiu argumentar e nem responder. O Véio morreu feio e lento. Morreu desistindo aos poucos, espalhando o seu fardo sobre a gente, ao ponto de que ficar finalmente em paz tenha talvez sido o ato de amor que ele nunca havia nos professado em palavras — ainda que o tivesse feito com uma vida de trabalho. Então, o alívio havia segurado as lágrimas. E sentir foi igual a saber. Ele não sofria mais. Nós não sofríamos mais. E agora podíamos lembrar dele do jeito que ele merecia, lembrar dele de como ele era antes daquele ano agonizante pra ele e pra nós. Havia mais fatores, também. Eu era mais velho agora, dez anos mais velho. E, de forma contraintuitiva, era muito mais vulnerável. Tinha trabalhado pra isso, ora. Tinha desencostado, o máximo possível, as costas da parede. Mas até vir toda essa explicação, lógica e metodológica, eu já tinha desidratado.
Eu achei que não demoraria pra acontecer de novo. E até que demorou um pouco. Mas aconteceu. Eu não posso dizer que ontem, 16 de janeiro de 2025, foi um dia péssimo por causa do que aconteceu. Foi um dia estranho, com toda certeza. Ventou de um jeito que eu queria dizer que nunca tinha visto — mas já vira, porque afinal esse é o fim do mundo. Caiu pedra no telhado, a poeira levantou, tudo ficou cinza e mesmo assim o calor infernal não foi embora. E, é claro, David Lynch morreu. Pensei: que triste. E a tristeza não veio. E então eu ocupei minha cabeça. Fui jogar alguma coisa, aproveitar que finalmente não tenho mais nada a fazer de forma muito urgente. Mas cada vez que eu voltava pra “realidade”, que lia alguma coisa, abria alguma rede social… Embargava a voz, pesava o coração, enchia o olho de água. Mas de algum jeito eu não desandei a chorar. Chorei pouquinho, só pra não fazer desfeita. Só pra evitar a segunda vez — e por consequência a terceira e a quarta e a quinta e a de todas as pessoas que eu admiro e que fazem a vida mais suportável pra mim.
Mas quando me deitei pra dormir e venci todo o desconforto, veio o sonho. E no sonho eu chorei. Chorei mais que o humanamente possível. Alaguei quarteirões. Que velho maldito, acabar comigo justamente desse jeito: em sonho. Ele estava lá, em pessoa, junto com dúzias de outras coisas desconexas: pernas de calabresa, um escorregador inflável, uma gincana, uma mansão. Mas antes que eu soubesse que as pernas de calabresa e o escorregador e a mansão e a gincana não eram reais, eu sabia que ele tinha morrido. E eu chorei. E todas as racionalizações possíveis vieram, ainda mesmo no sonho: eu nem vi tudo que ele já fez, eu recém ano passado comecei a explorar o trabalho dele, e tal, e tal, e coisa. E o sonho infinito de algum jeito enchia de tristeza.
Um desconforto. O coração que queima sob o peito. Cada uma das coisas que ainda não fiz, cada uma das ideias que em breve se mostrarão rosadas, e fugazes, e nada, ardem. Um cômodo, outro cômodo, incômodos até então bem descritos pela psicologia, mas não muito pela arquitetura. Um 360 pra cair de volta numa folha em branco. São quatro membros: um braço, outro braço, uma perna e outra perna. E cada vez que eu respiro eu recebo um presente e uma maldição. Eu preciso fazer alguma coisa. Várias coisas, quem sabe. Eu preciso dar forma ao infinito que não cabe em mim. Eu preciso viver, escancarar cada defeito meu aos caprichos do destino ou de sua ausência. Eu preciso, invariavelmente, morrer. De um jeito, de outro, daquele. Quem sabe desse. Horas desperto são horas. Minutos são minutos. E se na minha janela tiver um astronauta? E se na minha janela tiver uma janela? E se dentro dessa janela tiver um astronauta, um astrólogo, um astrônomo, um asteróide, um pato e um desastre?
Eu terminei a faculdade. Eu tenho 23 anos. Eu tenho coisas pra fazer e tenho coisas pra sonhar e tenho coisas pra fazer dentro do sonho. E eu tenho tanta saudade e tanta aversão à saudade. Nada nunca é o mesmo. Nada nunca foi igual, mas agora talvez seja ainda menos. Um desconforto. A vida queima sobre a morte e o nunca existir queima sobre o já ter existido. Cada um dos sonhos é uma realidade. A dor na boca, o vento do ventilador, a saudade e a aversão, cada copo de café, cada pedaço de torta, cada ovelha e cada fruto, cada ferida e cada centímetro das minhas costas (léguas da parede) são meus, e do mundo, e do tempo, e do sonho. Saber é igual a sentir, e igual não é igual a si. Pensei: que triste. E a tristeza veio, virá, viria. Foi.
BENTO VARGAS MENDES (1950–2013)
RITA LEE JONES DE CARVALHO (1947–2023)
DAVID KEITH LYNCH (1946–2025)
FIX YOUR HEARTS OR DIE.
Hoje é dia 17 de janeiro de 2025. O tempo voa.
O DOUTORADO por Dr. Memes é uma publicação esporádica feita no Medium. Recuse imitações! E acompanhe as próximas edições através do e-mail ou do Twitter @doutormemes. Noam Mendes é um historiador, professor e artista da Grande Porto Alegre.